Portal de Eventos - UEM, XVIII Semana da Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. IV Seminário de Integração do PRO Saúde PET Saúde

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“ALGUMAS CRIANÇAS JÁ SABEMOS O QUE TÊM”: O PAPEL DOS PROFISSIONAIS NA AVALIAÇÃO DE PROBLEMAS NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO
Ana Paula Alves Vieira, Glaucia Rodrigues da Silva, Marilda Golçalves Dias Facci

Última alteração: 2017-11-14

Resumo


O objetivo deste trabalho consiste em discutir como são realizados os diagnósticos de crianças com problemas no processo de escolarização, já que nos dias atuais muitas crianças nas escolas possuem algum tipo de diagnóstico de transtornos ou déficits. De acordo com o Censo escolar de Educação Básica (INEP, 2017), em 2008 o índice de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades se encontrava em 31% das escolas brasileiras, esse número aumentou em 2016 para 57,8%. De acordo com o Grupo de prevenção ao uso indevido de medicamentos (GUPIM, 2012), 3% a 6% de crianças em idade escolar são diagnosticadas com TDAH. Segundo o relatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2014) o índice de crianças com esse diagnóstico cresceu nos últimos anos e sua prevalência varia entre 0,9% a 26,8%. O crescente número de diagnósticos de transtornos ou déficits está intrinsecamente ligado ao amplo debate acerca da medicalização da infância, especificamente no contexto escolar.

O processo de medicalização teve sua origem no final do século XIX, quando as ciências médicas e humanas utilizaram seus conhecimentos para legitimar o sistema capitalista, que coloca no indivíduo a culpa pelo fracasso e sucesso. Neste contexto, buscou-se enfatizar aspectos biológicos para explicar os fenômenos e o sujeito, visando à normalidade. No âmbito escolar, por exemplo, as crianças que não conseguiam aprender da mesma maneira que as outras eram consideradas anormais e supostamente portadoras de algum transtorno (PATTO, 2010). Essa compreensão naturalizada perdura ainda hoje. Os profissionais da educação, na busca pela resolução da queixa, encaminham as crianças para os profissionais da saúde, com a intenção de que recebam um diagnóstico para o encaminhamento medicamentoso (MOYSÉS; COLLARES, 2010).

Esse aumento de diagnósticos de crianças com algum transtorno na escola impulsionou a realização de uma pesquisa, ainda em andamento, da qual decorre este trabalho. A pesquisa, que possui financiamento da Fundação Araucária, é intitulada “Avaliação psicológica das queixas escolares: ampliando fronteiras para a compreensão das dificuldades no processo de escolarização” e tem como objetivo aprofundar o estudo, teórico e prático, acerca da avaliação psicológica e neuropsicológica, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, proposta pelos autores L. S. Vygotsky, A. R. Luria e A. N. Leontiev. Essa psicologia, a partir do método materialista histórico e dialético, refuta o olhar biologizante e compreende o sujeito como síntese de múltiplas determinações. Sendo assim, o sujeito deve ser compreendido historicamente, em sua totalidade e essência (VYGOTSKY, 1995). Do mesmo modo, devem ser entendidos os fenômenos, como as queixas escolares.

Vygotsky (1995) defende que as mudanças na sociedade, nas relações interpessoais e na vida material produzem mudanças no psiquismo humano. O desenvolvimento do psiquismo ocorre por meio da atividade social, conforme as funções psicológicas elementares, que são inatas, vão sendo superadas pelas funções psicológicas superiores, tais como a atenção voluntária, a memória lógica, a abstração, o controle voluntário do comportamento e a formação de conceitos. Enfatiza-se que essa superação se dá pelo processo educativo e o ensino sistematizado. Sendo assim, defende-se que diante da queixa escolar, a criança deve ter o auxílio do outro para se apropriar dos conhecimentos já produzidos historicamente, pois a aprendizagem dos conteúdos ocorre inicialmente nas relações sociais e posteriormente é internalizada.

A pesquisa aqui apresentada tem como uma das etapas a realização de avaliações psicológicas com crianças do Ensino Fundamental I em uma escola municipal de Maringá-PR. No contato inicial com a escola, na qual seriam selecionadas as crianças que participariam do processo de avaliação, uma orientadora pedagógica comenta que não seria possível avaliar uma criança do 1º ano, porque as crianças acabaram de ingressar nessa escola e comenta ainda: “algumas crianças já sabemos o que têm”. Essa fala gerou alguns questionamentos: “como eles já sabem o que as crianças têm?”, “como tem se dado as avaliações psicopedagógicas nas escolas?”, “quando a escola recorre às avaliações psicológicas, médicas e fonoaudiológicas?”, “qual o papel dos diferentes profissionais envolvidos no processo de diagnóstico da criança?”. Tendo em vista estes questionamentos, busca-se investigar como é realizada a avaliação pedagógica; examinar o documento “Curso de avaliação psicoeducacional no contexto escolar”, do Departamento de Educação Especial e Inclusão Educacional (DEEIN, 2013), que conduz o encaminhamento da escola para outros profissionais; e investigar à quais profissionais o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM) está destinado. A metodologia utilizada foi a coleta de dados no documento supracitado, que fornece as diretrizes para a identificação da criança com dificuldades no processo de escolarização, bem como a análise do DSM no que concerne ao tema.

No documento “Curso de avaliação psicoeducacional no contexto escolar” (DEEIN, 2013) constam os subsídios para a avaliação psicoeducacional no contexto escolar no estado do Paraná. O material surge da necessidade, de acordo com o próprio documento,

de informar, auxiliar e orientar o processo de avaliação psicoeducacional no contexto escolar no intuito de tornar o entendimento dos problemas de aprendizagem sob o enfoque da identificação dos alunos que apresentam deficiência intelectual, deficiência física neuromotora, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação e transtornos funcionais específicos, entendidos estes como: dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, e transtornos de déficit de atenção e hiperatividade” (s.p.).

Sobre o encaminhamento aos profissionais externos à escola, o documento chama esse processo de “estudo de caso”, podendo a escola recorrer então à avaliação multiprofissional externa (psicólogos, especialistas em psicopedagogia, fonoaudiólogos e médicos) para que se tomem as decisões necessárias ao caso da criança. Essas decisões correspondem ao encaminhamento da criança ao “Atendimento Educacional Especializado”, como a Sala de Recursos Multifuncional, Sala de apoio, atendimento clínico, dentre outros encaminhamentos que dependem do caso específico (DEEIN, 2013). O que direciona esse encaminhamento é o diagnóstico final que a criança recebe.

No DSM (APA, 2013), são estabelecidos critérios diagnósticos a partir de uma compreensão naturalizada, isto é não consideram o processo de desenvolvimento da criança, como no caso do TDAH. Ademais o manual apresenta que “os critérios diagnósticos (...) podem ser reconhecidos por clínicos treinados” (p.41, tradução dos autores) e aponta que se direciona a profissionais relacionados à saúde mental como psiquiatras, médicos, psicólogos, etc.  Portanto entende-se que o psicopedagogo não estaria apto a usar o manual, porém o próprio material também afirma que esse pode ser aplicado em outros contextos fora da área da saúde, o que abre lacunas no sentido de entender a quem está direcionado de fato o DSM.

Assim, observa-se que o documento do governo do Paraná analisado que contém as diretrizes para a avaliação psicopedagógica se baseia no DSM ao apresentar as definições das deficiências e inclusive possibilita que o psicopedagogo aplique um questionário que está presente no manual. No anexo M do documento, direcionado aos psicopedagogos, intitulado “SNAP-IV – A.B.D.A. Questionário Escolar e familiar – Crianças e Adolescentes (levantamento de indicativos de Transtornos do Déficit de Atenção e Hiperatividade)” (DEEIN, 2013), há um modelo de questionário denominado que foi “construído a partir dos sintomas do Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiátrica” (DEEIN, 2013, s.p.), tendo sido uma tradução validada pelo Grupo de Estudos do Déficit de Atenção da UFRJ (GEDA) e pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFRGS. Por este documento, o psicopedagogo é respaldado a realizar um “levantamento de alguns possíveis sintomas primários do TDAH”, e está escrito que esse é apenas um ponto de partida, já que “o diagnóstico correto e preciso do TDAH só pode ser feito através de uma longa anamnese (entrevista) com um profissional médico especializado (psiquiatra, neurologista, neuropediatra)” (s.p.).

Nesse sentido, percebe-se que as diretrizes para a avaliação psicopedagógica mostra que essa avaliação destinada aos psicopedagogos tem ultrapassado os limites da pedagogia. Mesmo que o papel de dar o diagnóstico final seja do médico, este o faz baseado no questionário aplicado pelos psicopedagogos que dão a impressão diagnóstica do caso da criança. Dessa forma, cabe ao médico, muitas vezes, apenas receitar os medicamentos indicados para o transtorno diagnosticado na criança. Como pode-se ver o psicólogo está de fora dessa avaliação. Sendo assim profissionais da saúde como fonoaudiólogos e psicólogos muitas vezes não são consultados, já que os pedagogos podem entender desta maneira: “algumas crianças já sabemos o que têm”.

Dessa forma, com o fato de vários profissionais ficarem alheios da avaliação da criança, inclusive o psicólogo, é possível afirmar que as crianças têm sido avaliadas de uma forma que não são consideradas as múltiplas determinações das dificuldades no processo de escolarização, diferente da concepção de desenvolvimento humano defendida por Vygotsky (1995), mencionada anteriormente.  A avaliação tem se baseado em uma visão organicista do desenvolvimento e, pensando dessa forma, a solução encontrada para a dificuldade na escola tem sido de caráter medicamentoso, avolumando os diagnósticos de transtornos e déficits, como citados no início deste trabalho, e diminuindo a possibilidade de repensar a escola e a sociedade.

Espera-se que este trabalho levante discussões acerca do papel dos profissionais da saúde e da educação na avaliação e diagnóstico da criança, incluindo reflexões sobre qual a função da avaliação psicológica, bem como problematizações sobre as proporções que a avaliação psicopedagógica tem tomado. Enfatiza-se a necessidade de mais pesquisa sobre o tema.

Palavras-chave: Avaliação psicológica. Diagnóstico de transtornos ou déficits. Psicologia histórico-cultural.

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [APA]. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5th ed. England: New school Library, Washington, DC, London. 2013.

 

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA [ANVISA]. Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde, v. 8, n. 23, 2014. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br.

 

DEEN. Curso de avaliação psicoeducacional no contexto escolar. In: _____. Curitiba: Centro estadual de avaliação e orientação pedagógica, 2013.

 

GRUPO DE PREVENÇÃO AO USO INDEVIDO DE MEDICAMENTOS [Gpuim]. Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade: TDAH. Gpuim (Fortaleza), v. 16, n. 2, 2012. Disponível em http://portal.anvisa.gov.br/documents/33868/2894867/Boletim+GPUIM+n%C2%BA+02+%28maio+de+2012%29+-+TDAH/026c098c-ca88-4c2a-ac88-820d22bb2f33.

 

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA [Inep]. Censo Escolar da Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_censo_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf.

 

MOYSÉS, M. A. A; COLLARES, C. A. L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: _____. Medicalização de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. p. 71-110.

 

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. In: _____. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2010. p. 464.

 

VIGOTSKI, L. S. História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores. In: ______. Obras Escogidas III. Madrid, 1995.