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Agressividade e suas implicações no psiquismo
Guilherme Gazola Ferrari, Gustavo Lacatus da Costa de Oliveira, Letícia Brunhani Lucas, Mariana Carvalho Bianchi de Oliveira, Paulo José da Costa

Última alteração: 2012-07-18

Resumo


1. Introdução

A atual pesquisa referiu-se a um projeto vinculado ao “Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano”, coordenado por Paulo José da Costa, e cumpriu a uma exigência das disciplinas de “Introdução à Pesquisa em Psicologia” e “Práticas de Pesquisa em Psicologia II”, do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Inicialmente juntamos esforços para definir um problema de pesquisa que depois nos levou a uma sistematização do tema o qual apresentamos, ou seja, em torno da agressividade. Tal construção pautou-se na teoria psicanalítica proposta por Freud, por julgar que este conceito não está bem delimitado ao longo de sua obra, podendo deixar margem para interpretações equivocadas a este respeito.

Este trabalho se deu em dois momentos: elaboração do projeto no ano de 2010 e desenvolvimento da pesquisa ao longo de 2011. Tivemos como proposta fazer um resgate cronológico da concepção de agressividade, conceituando-a na obra de S. Freud. Para tanto, nossos objetivos foram examinar e caracterizar o conceito de agressividade na obra do autor acima citado, bem como outros conceitos implícitos que estão relacionados a ele, para com isso ter um panorama de como o conceito foi sendo estruturado. Valemo-nos também de artigos publicados nos últimos cinco anos relacionados ao tema, levantados pelas bases BVS – Psi e Google Acadêmico. Sob esse prisma, haverá a possibilidade de uma compreensão no âmbito psicanalítico e científico, superando-se a definição do senso comum, que muitas vezes é confundida dentro da esfera acadêmica e profissional.

Dessa maneira, considerando a formação do aparelho psíquico do sujeito, Freud (1996b) postula que o recém-nascido, no princípio da vida, não se distingue do outro. Nesse sentido, para que o bebê sobreviva há um cuidador que suprirá as suas necessidades e, em caso de não serem supridas, causarão um aumento de tensão, estabelecendo uma condição de desprazer. A descarga do desprazer geraria prazer, sendo constituído o princípio do prazer, regido por processos primários. Esse processo primário, para a psicanálise freudiana, seria o governador do inconsciente, cujo objetivo é eliminar o mais rápido possível a tensão de desprazer, retornando à estabilidade e gerando prazer. Dessa forma, tensões como a fome, por exemplo, quando não saciadas geram tentativas de eliminar o desprazer, manifestadas através do choro, movimentação corporal ou alucinação.

Assim, nesta mesma obra, Freud pontua que o bebê adquire, com o desenvolvimento neural e o amadurecimento cognitivo, a capacidade de se distinguir de sua mãe e do outro, diferenciando realidade e alucinação, já que percebe que esta última não o satisfaz. Aqui é marcado o estabelecimento do princípio realidade, entendido como o segundo constituinte para governar o aparelho psíquico, junto com o processo secundário, no qual ambos se caracterizam pelo sistema pré-consciente e consciente. Nesta perspectiva, o princípio de realidade não anula o princípio do prazer, apenas modifica-o, encontrando uma nova forma de realização do prazer. Adia-se a satisfação momentânea pela possibilidade de se obter prazer em longo prazo e consequentemente ocorre uma tolerância temporária do desprazer.

Prosseguindo em seus estudos e sistematizando algumas das conclusões que havia chegado até então, Freud (1996h) postula que o id é a expressão pura do propósito da vida humana, ou seja, a satisfação das necessidades inatas, sem o intuito da manutenção da vida ou proteção contra os perigos, uma vez que esta é a função do ego. Este, por sua vez, tem a missão de descobrir um método mais eficaz e menos perigoso para a obtenção da satisfação, sempre de acordo com o mundo externo, ficando a cargo do superego limitar as satisfações.

Ainda nesta obra, Freud pontua os instintos como forças que estão por trás das tensões causadas pelo id, representando algumas das exigências feitas pela mente, ou seja, são a causa de toda a atividade das tensões e, assim que estas são atendidas, é retomado o estado normal. Os instintos podem mudar de objetivo deslocando e substituindo, sendo sua energia transferida para outro instinto (Freud, 1996h).

Na perspectiva freudiana, destacam-se dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo. O objetivo do primeiro é a união, enquanto o do segundo é a destruição. Ademais, o intuito final do instinto destrutivo é levar o que é vivo para o estado de morte, sendo chamado então de instinto de morte. Esses instintos operam mutuamente um contra o outro no aspecto biológico. A fusão destes instintos modificados, segundo o que é colocado pelo autor, gera diversos resultados, como, por exemplo, quando o excesso de agressividade sexual não é controlado pode o amante se tornar um criminoso sexual (Freud, 1996h).

Assim, Freud (1996h) afirma que os instintos estão por toda a mente, mas parte inicial de Eros, a libido, se encontra na porção não diferenciada do ego-id, servindo este espaço para neutralizar as forças opostas, sendo uma “(...) força quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual” (Freud, 1996a, p. 205). O instinto de morte, nesta visão, é silencioso e só aparece quando é desviado para fora do aparelho com o instinto de destruição e, ainda assim, este instinto é fundamental para a preservação do indivíduo que conta, neste momento, com o apoio do aparelho muscular.

Para Freud (1996h), quando o superego se estabelece, grande parte do instinto de destruição acaba por se fixar no ego, gerando ataques autodestrutivos. A partir desta perspectiva, conter a agressividade é perigoso, e vê-se muitas vezes num acesso de raiva pessoas que se auto-agridem quando queriam mesmo investir esta agressividade no outro. Por conseguinte, parte da agressividade permanece no interior do indivíduo, podendo causar a morte deste, porém isso só ocorre quando sua luta contra o mundo é mal sucedida.

De acordo com Ferrari (2006), ao final da obra de Freud é colocado que no interior do sujeito, como há a pretensão de tornar a pulsão de morte inofensiva, a agressividade seria vista como versão de Eros; e que quando a agressividade é colocada no exterior ela seria destruição, uma versão da pulsão de morte, sendo uma forma ruidosa que o sujeito encontra para se preservar na cultura.

            Neste sentido, podemos verificar em Freud (1996f) que a libido tende a tornar inativo o instinto destruidor e faz isso desviando esse instinto para fora no sentido de objetos do mundo externo. Esse instinto é chamado de destrutivo, instinto de domínio ou vontade de poder. Uma parte do instinto fica a serviço da função sexual (sadismo), e a outra porção fica dentro do organismo (masoquismo original, erógeno). Assim, uma parte do instinto de morte do organismo foi transferida para fora, para os objetos, e outra ficou dentro como um resíduo de seu masoquismo erógeno. Esse masoquismo é a prova da junção entre o instinto de morte e Eros.Mas, deve-se levar em conta que existe uma vinculação do masoquismo com o sadismo nos organismos, e esta procura desintegrá-lo em um estado de estabilidade inorgânica.

Segundo Ferrari (2006), a noção de agressividade, para Freud, aproxima-se da de instinto animal quando expressa na luta pela conservação da espécie, diferenciando-se pelo fato de a agressividade humana ser inscrita em uma ordem social. Em nossa civilização há herança de uma lei a que o humano se submete, articulando-se à proibição, hostilidade e ética. Ou seja, para conviver em comunidade foi preciso que o indivíduo recalcasse fontes de prazer, como, por exemplo, o incesto, impedindo a plena vivência libidinal. Nas palavras de Freud (1996g):

 

 

Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também a sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se acha em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade por qualquer período de tempo eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. (Freud, 1996g, p. 119)

 

 

Assim, Ferrari (2006) coloca que no humano, para Freud, há hostilidade e ódio, estes dirigidos ao outro que põem em perigo um prazer que não quer dividir. Hostilidade e ódio se manifestam sob a forma de olhar, ironia, insulto, chiste obsceno e até mesmo ódio declarado. Na mesma concepção é acrescentada a crueldade, que tem sua base no egoísmo, como forma de dizer da agressividade na ação direta contra o outro e contra a si mesmo, tal como seria observado no sadomasoquismo. A partir desta caracterização, Ferrari (2006) expõe que a história da humanidade é repleta de atos considerados violentos e agressivos, o que justificaria Freud tê-los situado no coração da civilização, dando um caráter sócio histórico a eles.

De acordo com Moreira et al. (2009), a agressividade em Freud (1996g) é entendida como um dos componentes do psiquismo e como manifestação da pulsão de morte, contraposta à pulsão sexual, ambas exigindo um arranjo subjetivo entre o ego e o superego, o qual tem que dar conta do circuito pulsional ao peso de ideais identificatórias da cultura. Moreira pontua que isto ocorre em virtude de se colocar a sexualidade como uma barreira contra os desejos de destruição, pensada em termos de fusão pulsional e como uma formação defensiva.

Segundo a interpretação de Moreira et al. (2009), Freud postula o sentimento de culpa, por sua vez, como manifestação do superego ao retornar a violência pulsional dirigida ao outro, em agressividade contra o próprio ego, aumentando a incidência de sintomas pós-traumáticos decorrentes da perspectiva levantada.

Buscando uma definição clara e precisa do conceito de agressividade na perspectiva psicanalítica freudiana, distinguir os conceitos de agressividade e violência é primordial para superar equívocos tão comuns em discussões e artigos científicos. Neste sentido, a violência é uma das questões presentes em nossa vida social e nas demais e diversas relações que possuímos. Está implicada no momento em que o indivíduo estabelece laços e entra na sociedade, podendo levar aos processos de destruição e anulação do outro. Em contrapartida, a agressividade deve ser concebida como elemento do processo de construção da subjetividade, de modo a auxiliar na estruturação do ego, atuante nas ordens de cunho sexual e da autoconservação (Birman, 2006; Ferrari, 2006; Moreira et al, 2009).

Em decorrência dos tantos aspectos construídos ao longo da obra de Freud, que nem sempre, aparentemente, caminham para uma definição comum, faz-se mister um esclarecimento sobre o conceito de agressividade, bem como esta se manifesta na dinâmica psíquica dos indivíduos. Entende-se que esta sistematização contribui para uma leitura mais consistente da subjetividade humana que se estrutura em diferentes momentos históricos. Em suma, retroceder ao nível conceitual para buscar, a partir daí, os processos da dinâmica psíquica e poder-se pensar em novas e/ou melhores construções subjetivas.

 

2. Objetivos

A proposta do presente trabalho foi de sistematizar o conceito de agressividade e conceituá-lo, tomando como base a obra freudiana e alguns de seus comentadores.

 

3. Método

Esta pesquisa possui um caráter exploratório conceitual. Teve por objetivo analisar o conceito de agressividade na teoria psicanalítica freudiana e a interpretação que alguns comentadores fazem a respeito. Deste modo, em um primeiro momento realizou-se uma pesquisa de cunho bibliográfico, com o intuito de fazer um resgate teórico dos últimos cinco anos sobre o que havia sido produzido acerca tema. Valemo-nos dos sites de busca BVS-Psi e Google Acadêmico para realizar tal etapa, sempre utilizando as seguintes palavras-chave: agressividade, psicanálise e Freud. Este levantamento nos possibilitou analisar aspectos distintos e nos auxiliou a encontrar novos caminhos dentro da perspectiva freudiana, possibilitando algumas conclusões, o que nos deu base para não fazer apenas uma repetição do que já havia sido escrito ou dito anteriormente sobre o assunto (Lakatos & Marconi, 1986).

            Em um segundo momento, após analisar os artigos, fez-se uma sistematização do conceito de agressividade através dos seguintes dicionários de psicanálise: Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (2001), e o Dicionário Internacional da Psicanálise de Mijolla (2005). Depois, partiu-se para a leitura e o fichamento dos textos freudianos selecionados a partir das referências que os artigos utilizaram para tratar sobre o tema e pela ordem cronológica da obra do autor, a saber: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1996a), Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1996b), Totem e tabu (1996c), Pulsões e destino da pulsão (2004), Além do princípio do prazer (1996d), O Ego e o Id (1996e), O Problema Econômico do Masoquismo (1996f), O mal-estar na civilização (1996g) e A mente e o seu funcionamento (1996h); que nos embasaram para, junto com a leitura dos artigos anteriores, construirmos a sistematização de agressividade e assim, alcançarmos o nosso objetivo final.

 

4. Resultados e Discussões

Procurando sistematizar melhor o conceito de agressividade recorremos ao Vocabulário de Psicanálise (Laplanche & Pontalis, 2001) e ao Dicionário Internacional de Psicanálise (Mijolla, 2005), especificamente o verbete de autoria de Bergeret (2005). Desse modo, para Laplanche e Pontalis (2001) o conceito de agressividade é caracterizado como uma disposição a prejudicar o outro, no intuito de constrangê-lo ou destruí-lo. Ela pode ser manifesta através de ações motoras e também por meio de comportamentos tanto simbólicos quanto concretos. No decorrer dos estudos freudianos percebeu-se a importância da agressividade desde o início do desenvolvimento do sujeito, estando ligada com o mecanismo da sexualidade e também com a posterior separação desta. Bergeret (2005) completa que em um sentido específico a agressividade corresponde a fantasias ou comportamentos, apresentando as mesmas consequências para o indivíduo. Destaca que ela não possui apenas uma origem e nem mesmo é homogênea, estando associada à ideias imaginárias ou sintomáticas, caracterizando tanto manifestações afetivas hostis quanto manifestações eróticas.

Bergeret (2005) pontua que na primeira consideração que Freud faz a respeito da agressividade já a relaciona com o sadismo, isso em 1900. Posteriormente, em 1905, ele teria feito uma referência agressiva também no masoquismo, concebendo que a posição masculina favoreceria certa atividade sádica, ao passo que a posição feminina influenciaria uma hipótese masoquista. Freud teria exposto essa ideia em uma nota de rodapé acrescentada aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1996a), no ano de 1915.

No entanto, Laplanche e Pontalis (2001) apontam que a teoria freudiana só deu o devido reconhecimento à agressividade tardiamente, pelo fato de que Freud refutava a ideia de pulsão de agressão proposta por Alfred Adler em 1908. Porém, a afirmativa anterior não permite dizer que Freud não levava em conta a agressividade antes de 1920. Em suas intervenções ele muitas vezes encontrou na resistência dos pacientes uma marca agressiva e assim, viu nela um traço a ser utilizado no tratamento psicanalítico. Os autores seguem dizendo que de início Freud não considerou uma pulsão específica para os comportamentos agressivos, pois para ele, existiria a pulsão como um impulso que não se pode fugir, fazendo com que o aparelho psíquico realize um movimento, ou seja, a pulsão exige atividades para se vencer barreiras.

            Portanto, considerando a construção psicanalítica de sujeito é primordial perpassar por algumas das colocações de Freud (1996h) a respeito das pulsões. Em 1920 ele (1996d) pontua que o psiquismo humano é regulado por dois tipos de princípios, o de prazer e o de realidade, sendo que eles tentam manter o equilíbrio do organismo, o primeiro busca a autopreservação, num contraste entre o amor do ego e o amor objetal, no sentido de unir. Em contrapartida, o segundo visa separar investimentos e “destruir coisas (...) levar o que é vivo a um estado inorgânico” (Freud, 1996h, p.161). Porém, existem forças dentro deste que causam muita excitação interna e são descarregadas no aparelho mental, os instintos.

Dentro desta concepção os instintos foram classificados em duas espécies: os que conduzem o que é vivo à morte e os sexuais, que tentam renovar a vida. Assim, tem-se a oposição entre os chamados instintos de vida (impulsos libidinais ou sexuais) e os instintos de morte (impulsos destrutivos ou agressivos).  Posteriormente, Freud (1996e) vai complementar dizendo que estas duas classes de instintos podem ser consideradas, baseadas na biologia em última análise como autopreservadoras, pois ambas, tentam fazer com que se restabeleça a ordem anterior ao surgimento da vida. Segundo as palavras do autor “o surgimento da vida seria, então, a causa da continuação da vida e também, ao mesmo tempo, do esforço no sentido da morte. E a própria vida seria um conflito e uma conciliação entre essas duas tendências” (Freud, 1996e, p.53).

Freud (1996e) admite, portanto, que ambas as classes de instintos estão fusionadas, e que a manifestação das duas seria o fenômeno da vida, mas com isso pondera também a possibilidade destas se apresentarem desfusionadas. A interpretação de Metzger e Silva Junior (2010) e de Birman (2006) concorda com Freud, ao falarem que este seria o momento em que a pulsão de morte poderia agir livremente dentro e fora do indivíduo. Esta pulsão então poderia se ligar a Eros (instinto de vida) e descarregar uma parcela da pulsão de morte para fora do indivíduo e a outra ficaria dentro deste, que ao se unir com a sexualidade constituirá o masoquismo.

Freud (1996a) vai defender a ideia de que todos os indivíduos, ao longo de seu desenvolvimento, passam por fases obrigatórias. Dessa forma, em função da fixação infantil da libido, alguns deles podem ficar presos a algumas dessas etapas, como no caso de pessoas que mesmo adultas não superaram a autoridade dos pais. No mesmo texto também é explanado que a atividade sexual infantil deixa vestígios, ainda que inconscientes, na memória das pessoas, assim como as contingências externas, trazendo implicações no desenvolvimento das mesmas, influenciando na elaboração e dinâmica de seus aparelhos psíquicos. Por isso, a pulsão de dominação, que controla a fase de organização pré-genital, aliada a uma ausência da barreira de compaixão, pode fazer com que a relação estabelecida na infância entre as pulsões cruéis e as erógenas se torne inseparáveis. Essas barreiras seriam estabelecidas pela educação, estimulando a construção de forças defensivas morais à custa da sexualidade.

            Toda essa construção, então, serviria de norte para a elaboração do aparelho psíquico, que de acordo com Freud (1996e; 1996h) estaria estruturado por três instâncias. A primeira delas é o id, que contém os instintos e tudo o que é herdado, estando incumbida de buscar satisfazer as necessidades inatas, em busca do prazer. A segunda estrutura é o ego, uma parte do id que foi modificada por ação do meio externo, sob influência do sistema percepção-consciência, tendo autonomia sobre a satisfação ou não de nossas exigências, substituindo o princípio prazer que impera no id pelo princípio realidade, tendo como tarefa principal manter o organismo vivo. A terceira estrutura, por sua vez, é o superego, que é um agente fruto do período infantil no qual se estava submetido às ordens dos pais, consistindo em limitar as satisfações.

            Esta terceira instância psíquica, tal como posto em Freud (1996h), culmina na fixação de quantidades consideráveis de instinto agressivo no interior do ego, atuando auto destrutivamente. Acabaria por repercutir em uma ameaça à saúde e obstáculo para o desenvolvimento cultural, considerando a agressividade nociva e provocadora de doenças. Um exemplo desta dinâmica estaria quando em um acesso de raiva uma pessoa acaba por se auto-agredir, embora quisesse cometer o ato em outro, pois teve a transição de sua agressividade impedida pela internalização da lei (barreira imposta pelo superego), desviando-a contra si mesma, numa tentativa da pulsão de morte em levar o indivíduo ao estado inorgânico das coisas.

            Segundo a interpretação de Birman (2006), a respeito de Freud, essa mesma dinâmica pode ser verificada no masoquismo, quando em sua dinâmica um resto da pulsão de morte, retirada do psiquismo, combinar-se-ia com a sexualidade. Isso significa que a agressividade passa a ser voltada para o próprio ego - auto destrutividade. Já a outra parcela da pulsão de morte, ligada à pulsão de vida se voltaria para fora do indivíduo, como ocorre no sadismo, sendo esta uma agressividade voltada para o exterior – destrutividade.

            Neste sentido, Freud (1996a) fala que o sadismo, atitude ativa de obtenção de prazer na dor e na crueldade, também pode constituir a sexualidade nas pessoas normais, e que este seria um elemento agressivo autônomo e excessivo da pulsão sexual, que se deslocaria para o lugar mais viável. O masoquismo, por sua vez, contemplaria a forma passiva de se obter prazer na dor perante a vida sexual e o objeto sexual. “(...) padecimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual.” (Freud, 1996a, p. 150). Ao associar sadismo e masoquismo, Freud (1996a) vai então falar que comumente o masoquismo se estabelece como uma continuação do sadismo, que neste caso se voltaria contra a própria pessoa, onde para começar ela assumiria o papel de objeto sexual.

            Freud (1996g) discute a respeito da concepção de agressividade influenciada por uma ordem civilizatória, trazendo implicações na dinâmica dela nos indivíduos, “referente a uma lei que o humano se submete e faz com que articule proibição, hostilidade e ética” (Ferrari, 2006, p. 54). Discorrendo melhor sobre essa colocação Freud (1996g) vai, então, falar que a civilização impõe restrições ao homem para poder cumprir com suas necessidades econômicas. A primeira restrição, sexual, diz respeito à proibição de uma escolha incestuosa de objeto; as posteriores estariam por conta dos tabus, leis e costumes que são organizadas para estabelecer uma ordem; e os indivíduos se constituiriam entre a busca do prazer e a repressão. Em contrapartida, as cotas de agressividade contidas nos instintos do homem acabariam por perturbar os relacionamentos com o próximo, ameaçando de desintegração a sociedade. Essa tendência à agressão é exemplificada por Freud, ainda no mesmo texto, por meio de atitudes como exploração do trabalho sem compensação, utilização sexual do outro sem o seu consentimento, humilhar o próximo, causar-lhe sofrimento, matá-lo.

A partir de tudo isto, Freud (1996g) coloca essa tendência agressiva como constituinte (auto-subsistente) do homem, sendo ela o maior impedimento à civilização. Diz que a civilização elabora um processo a serviço de Eros, sob o propósito de unir indivíduos humanos isolados, depois famílias, povos e nações, em uma unidade da humanidade, sob o discurso do amor ao próximo. No entanto, o instinto agressivo natural, de hostilidade de um contra os outros e dos outros contra esse um, é colocado como opositor ao programa da civilização. Neste caso, define a agressividade como representante do instinto de morte, dividindo o domínio do mundo com Eros. De acordo com a interpretação de Ferrari (2006) sobre as colocações freudianas em torno da agressividade, no ser humano, como dito acima, existe hostilidade e ódio, dirigidos ao outro quando este ameaça a obtenção de um prazer que não quer dividir, manifestando-se através de ironias e olhares.

Nas considerações de Moreira et al. (2009) os compromissos com a cultura repercutem no sofrimento do homem. Assim, para se entender os meios pela qual a civilização utiliza para inibir a agressividade do homem, Freud (1996g) diz que é necessário estudar a história do desenvolvimento desse indivíduo. O que acontece no indivíduo para tornar inofensivo seu desejo de agressão é a internalização da mesma, ou seja, a agressividade se volta no sentido do seu próprio ego. Neste momento, uma parte do ego, o superego, em forma de consciência, coloca contra o ego essa mesma agressividade. Quando uma tendência instintiva encontra repressão, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em sentimentos de culpa.

Moreira et al. (2009) também tem uma leitura parecida de Freud, ao falar que este considerou o sentimento inconsciente de culpa como uma agressividade contra o próprio ego, em virtude da ação do superego contra a violência pulsional dirigida ao outro. Desse modo, entendemos que a agressividade na cultura resulta do que Freud mesmo chamou de mal-estar, algo sentido cotidianamente e fruto da culpa oriunda do parricídio.

Em primeira análise, o sentimento de culpa é posto por Freud (1996g) como a tensão entre o superego e o ego, um medo da perda do amor, uma ansiedade social, expressando a necessidade de punição. Seria encontrado não apenas quando se executa o ato considerado mau, mas também quando há a intenção de executá-lo. Numa segunda etapa, o sentimento de culpa adquire um significado mais complexo, pois a autoridade, nessa fase, é internalizada através do estabelecimento de um superego mais consolidado.

Há duas teorias, segundo Freud (1996g), que explicam o sentimento vingativo do superego. Ou ele pode vir do próprio instinto agressivo do homem ou pode ser internalizado devido aos mecanismos punitivos que a sociedade impõe. Neste sentido, a agressividade vingativa da criança será determinada pela quantidade de agressão punitiva que espera do pai. Assim, na formação do superego e no surgimento da consciência, fatores constitucionais inatos e influências do ambiente atuam de forma combinada.

A importância de saber o funcionamento da agressividade e como esta pode ser manifesta dentro do indivíduo e na cultura é proporcionar um conhecimento maior de como lidar com as situações de violência que estamos inseridos hoje, para que também não caiamos em preconceitos e culpabilizando indivíduos que cometem atos violentos, pois tem toda uma questão socioeconômica por trás e que influencia nos instintos sexuais e agressivos do ser humano. Faz-se mister colocar nessa reflexão alguns apontamentos que Pellegrino (1987) faz sobre as renúncias instintivas do ser humano, que é feita desde o pacto edípico, no qual os homens abriram mão de seus desejos incestuosos pela mãe e parricidas pelo pai em troca do amor deles e de uma filiação, que daria entrada assim em uma sociedade.

A entrada na vida social também implicaria em um pacto social, no qual os indivíduos renunciariam alguns de seus prazeres por troca de uma segurança e condições mínimas de sobrevivência. No entanto, dentro de uma sociedade capitalista além da repressão dos instintos também existe uma mais repressão, mais incisiva que a primeira e que dificulta ainda mais a externalização da agressividade, como coloca Marcuse (s/d) citado por Pellegrino (1987), que entraria na exploração do homem pelo homem. Isso abarcaria decorrências graves, pois o pacto é de mão dupla; caso um desrespeite o outro, haverá consequências. Dessa maneira, se a sociedade quebra esse pacto e não dá condições mínimas para esse indivíduo sobreviver, esse, por sua vez, desrespeitará essa sociedade.  

A importância desse texto é no sentido de que se o ego desse indivíduo estiver bem consolidado ele poderá utilizar a agressividade dele como uma forma de externaliza-la para a sua preservação, lutando por uma mudança dessa ordem estabelecida. Caso o ego esteja fragilizado essa agressividade pode voltar-se contra o próprio indivíduo, causando uma autopunição, no qual os desejos inconscientes recalcados no pacto edípico, como parricidas, podem voltar e, assim, cometerem atos violentos contra essa sociedade (Pellegrino, 1987).

Portanto, a partir do nosso objetivo, entendemos a agressividade como uma expressão da pulsão de morte, mas ela também pode se fusionar à pulsão de vida para a preservação do indivíduo. Considerando isso, podemos dizer que essa pulsão de morte tem três caminhos para manifestar a agressividade. Primeiramente seria uma fusão entre instinto de morte e instinto de vida, para um equilíbrio da vida. O segundo seria a externalização da agressividade no mundo como uma forma de autopreservação e, finalmente, o terceiro seria uma autopunição, a partir da severidade e a agressividade do superego contra o ego (Freud, 1996e).

 

5. Conclusão

Em meio a todo o resgate feito até aqui, bem como sistematizações das colocações de Freud em torno da agressividade, percebe-se o quanto esta temática é ampla e está dissipada ao longo da obra freudiana. Isto justifica o fato dela ser pouco debatida nos trabalhos acadêmicos atuais, bem como ser interpretada frequentemente com equívocos. O estudo demonstrou o quanto é difícil separar por fases as colocações de Freud sobre a agressividade, pois elas perpassam toda a estruturação que ele faz de indivíduo, suas dinâmicas e a sociedade. Sendo assim, buscamos entender como a psicanálise a foi concebendo ao longo das obras selecionadas de Freud, discutindo acerca das colocações que, no nosso ponto de vista, são realmente feitas sobre a agressividade. Desse modo, construímos uma conceituação ampla e detalhada de suas implicações.

Nossa construção constatou que o tema selecionado foi ganhando evidência e importância ao longo da obra psicanalítica, mostrando-se um dos fatores fundantes da subjetividade do sujeito. Percebemos que a agressividade está em operação desde muito cedo no desenvolvimento humano, tal como quando Laplanche e Pontalis (2001, p. 11) afirmam que ela sublinha o “(...) mecanismo complexo de sua união com a sexualidade e da sua separação dela”. Assim, ela circunda toda a vida do indivíduo e as relações a que este estabelece, trazendo grandes consequências a ele mesmo e ao processo civilizatório.

Contudo, ressaltamos que nossas interpretações e conclusões, auxiliadas por algumas produções científicas recentes, não esgotam as reflexões em torno do tema. Pelo contrário, potencializam e abrem portas para novas discussões, tendo em vista que apenas a descrevemos em linhas gerais. Enriquecem as produções acadêmicas por ponderar um tema central para a psicanálise freudiana, mas ao mesmo tempo permitem novos olhares ao homem e ao processo civilizatório como tal, entendendo a dificuldade de se viver nessa sociedade.

 

Referências

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Freud, S. (1996e). O Ego e o Id. In: S. Freud. O ego e o id e outros trabalhos (pp.33-77). Rio de Janeiro: Imago. v. XIX. (Original publicado em 1923).

 

 

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Palavras-chave


Agressividade; Psicanálise; Freud

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