Última alteração: 2012-07-25
Resumo
Clínica das Vulnerabilidades: problematizações sobre mulheres no crime
*Flávia Fernandes de Carvalhaes[1]
*Valéria Cristina de Siqueira Ferreira[2]
“Clínica das Vulnerabilidades” é um Projeto de Extensão do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Londrina, que tem o objetivo de problematizar contextos que produzem e/ou ampliam vulnerabilidades de algumas pessoas ao cometimento de crimes. As atividades de campo são realizadas por meio de encontros individuais e/ou em grupos, com presos(as) custodiados(as) (regime provisório, fechado ou aberto) em cinco Unidades Prisionais na cidade. Para apresentação neste congresso, decidimos compartilhar algumas reflexões teóricas articuladas a partir das experiências vivenciadas em dois distritos femininos do município, e, mais especificamente, sobre o silêncio e fabricação de visões estereotipadas em relação a mulheres criminosas.
As análises a seguir se compõem a perspectiva de “processos de subjetivação” (Foucault, 2006) pautada na teoria foucaultiana, produtos de relações históricas e sociais, e não numa suposta interioridade. Nesse sentido, buscamos referência em autores que rompem com noções identitárias que categorizam mulheres e homens em papéis sociais cristalizados, e que concebem a “subjetividade essencialmente fabricada e modelada no registro social” (Guattari e Rolnik, 2010, p. 40).
Vivemos em uma sociedade obcecada por segurança e marcada pela violência, sendo que, nos diversos contextos urbanos, fatores como desigualdade social, incitamento ao consumo, exposição da vida privada em espaços públicos, dentre outros, concorrem simultaneamente para a produção da criminalidade. Em contrapartida, análises relacionadas a pessoas envolvidas em prática ilícitas são geralmente marcadas por perspectivas naturalizantes, como a idéia de estrutura sociopata ou ausência de caráter (Sales, 2007).
Analisar o envolvimento na criminalidade a partir do conceito de vulnerabilidade (Mann; Tarantola; Netter, 1993), sugere uma reflexão sobre discursos, práticas, tecnologias e contextos que interferem nas trajetórias de vida dessas pessoas. O crime articula-se como um fenômeno complexo, que se fabrica em meio a condições econômicas e políticas, interfere no processo de produção de certos modos de vida e na construção e legitimação de normativas sociais e geográficas. Nesse sentido, não situamos o crime como um efeito colateral no sistema de produção capitalista, ou seja, como uma exceção, mas passa a ser a “expressão instalada de uma cultura de violência” (Moura, 2007, p.28), uma necessidade de articulação e sobrevivência política e econômica.
O fenômeno de mulheres no crime é pouco debatido nos meios acadêmicos e midiáticos, e, quando enunciado, está comumente relacionado a noções naturalizantes. É como se elas estivessem invadindo, sem permissão, um campo dito masculino. Barcinski (2009a; 2009b), Faria (2008) e Moura (2007) afirmam que uma série de discursos associam mulheres no crime à expressão de insanidade, “desvio” de comportamento, e, principalmente, vínculos afetivo-conjugais com parceiros que cometem crimes. Tais enfoques são antigos, a linguagem criminológica no século XIX, por exemplo, situava as mulheres que se envolviam em práticas ilícitas como um grupo “menos capaz” (Faria, 2008).
De fato, as mulheres estão menos envolvidas no mundo do crime, mas tal dado expressa agenciamentos atravessados por estereótipos de gênero, e não reflexo de uma “natureza” feminina dócil. Afirmar uma suposta incapacidade no cometimento de crimes implica na naturalização do universo feminino em torno da ideia de passividade e nega dados que apontam o aumento da incidência de mulheres envolvidas em delitos.
O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen (2012) do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça indica que, no ano de 2000, foram registradas 10.112 mulheres presas no Brasil. Já no último censo, realizado em 2011, foram registradas 34.058 mulheres nesta situação. Em comparação com a população masculina, nota-se um número bem maior de homens presos, sendo 222.643 em 2000 e 480.524 em 2011, entretanto, em termos comparativos, observamos que na última década praticamente dobrou a quantidade de homens condenados, enquanto a quantidade de mulheres triplicou.
Tais indícios indicam mais do que características da criminalidade na atualidade, mas explicitam que, nas últimas décadas, uma série de mudanças tais como a socialização de métodos contraceptivos, a inserção da mulher em espaços públicos de deliberação e controle, o aumento da competitividade no mercado de trabalho, o avanço dos estudos de gênero, entre outros elementos, interferem em alguns limites reguladores definidos na sociedade moderna, como masculino/feminino, ativo/passivo, público/privado.
Porém, o aumento e as novas configurações de crimes cometidos por mulheres estão, muitas vezes, encobertos por uma série de discursos e práticas que insistem na manutenção de normativas de gênero. Esses processos de ocultação se articulam por meio da invisibilidade dos atos, de afirmações de que o crime é uma atividade inerentemente masculina ou de análises que articulam visões estereotipadas sobre as ações cometidas por mulheres.
Os discursos midiáticos contribuem significativamente para a produção de visões estigmatizantes de mulheres no crime, que se materializam em duas imagens antagônicas: a mulher vitima ou a agressora masculinizada (Moura, 2007). Situada como passiva, manipulada pelo amor a um homem, cega pelo ciúme ou desesperada pela necessidade de sustentar os filhos, a “mulher vítima” aparece nos meios de comunicação através de reportagens que relacionam os crimes cometidos por elas a momentos de irreflexão, irracionalidade, fragilidade ou paixão. Na contraposição dessa perspectiva, a “agressora masculinizada”, se apresenta como uma mulher com desvio de comportamento (feminilidade masculinizada) ou hipersexualidade (vaidosa, sedutora, fútil).
Outra característica das articulações empreendidas pela linguagem midiática é a insinuação de que os objetivos de mulheres no crime são mais superficiais do que os dos homens. Situados como “busca de vida fácil”, “desejo por luxo”, “paixão”, a imprensa tende a ridicularizar e banalizar os atos cometidos por elas, e ocultar outros modos de participação de mulheres no crime.
A mídia se soma a uma série de “operadores de vigilância” (Mansano, 2009, p.55) que se espalham no dia a dia. Ramificando-se em diferentes formas (jornal, rádio, programas de TV, internet), as produções midiáticas ocupam cada vez mais espaço na sociedade contemporânea, contribuem na industrialização de determinados modos de vida e na efetivação de algumas estratégias de monitoramento social. Mansano (2009) argumenta que “devido à ampla disseminação, os operadores de vigilância estão se tornando corriqueiros e, por isso mesmo, a estratégia por eles utilizada vem ganhando contorno de naturalidade que faz com que as pessoas se tornem quase indiferentes à sua presença” (p.55).
Nesse sentido, a problematização das estratégias, discursos, eventos, tecnologias e contextos que contribuem na construção de visões estereotipadas sobre mulheres no crime, principalmente na afirmação de identidades cristalizadas de gênero, implica na visibilidade de uma série de estratégias, que, a todo o momento, tentam regular a sociedade e coibir a expressão de modos alternativos de vida.
Palavras Chave: Vulnerabilidade, Gênero e crime.
Referências
Barcinski, M. (2009a). Protagonismo e vitimização na trajetória de mulheres envolvidas na rede de tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Ciência e Saúde Coletiva, 14(2): 577-586.
Barcinski, M. (2009b). Centralidade de gênero no processo de construção da identidade de mulheres envolvidas na rede de tráfico de drogas. Ciência e Saúde Coletiva, 14(5): 1843-185.
Faria, T. D. (2008). Mulheres no Tráfico de Pessoas: vítimas e agressoras. Cadernos Pagu, Campinas, V. 31, Jul/Dez, p.151-172.
Foucault, M. (2006). A ordem do discurso. São Pauo: Loyola.
Guattari, F e Rolnik, S. (2010). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
Mansano, S. R. V. (2009). Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle. – São Paulo: Ed. Summus.
Mann, J. M.; Tarantola, D. J. M.; Netter, T. W. (1993). A Aids no mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
Moura, T. (2007). Rostos invisíveis da violência armada: um estudo de caso sobre o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras.
Sales, A. M. (2007). (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Ed. Cortez.
[1] Universidade Federal de Santa Catarina; doutoranda em Psicologia; carvalhaes1@yahoo.com.br;
[2] Faculdade Pitágoras de Londrina Pr; Discente em Psicologia; valsiqfer@yahoo.com.br;